George Orwell era um escritor inglês que entre outros livros lançou 1984. É sobre uma sociedade autoritária, em tudo dominada pelo Estado. Nela os cidadãos vivem vigiados pelo Grande Irmão que tudo vê e tudo sabe. Entre os recursos utilizados nesta fictícia nação está a criação de uma nova língua, não por acaso chamada novilíngua, na qual um termo tem o significado oposto ao que realmente é.
A novilíngua era desenvolvida não pela criação de novas palavras, mas pela "condensação" e "remoção" delas ou de alguns de seus sentidos, com o objetivo de restringir o escopo do pensamento. Uma vez que as pessoas não pudessem se referir a algo, isso passa a não existir. Assim, por meio do controle sobre a linguagem, o governo seria capaz de controlar o pensamento das pessoas, impedindo que ideias indesejáveis viessem a surgir[1].
E o que George Orwell e sua novilíngua tem a ver com a Igreja? Um jogo consolidado de palavras cujo significado é totalmente diverso do original. Detalhe: as palavras estão em re-significação contante! Exemplos? Vamos lá!
Doutrina
Nos primórdios da Igreja a doutrina era o ensino de determinadas práticas. Os discípulos deveriam não apenas memorizá-las, como utilizá-las no dia-a-dia da Igreja. Na moderna linguagem
orwellgospeliana doutrina é algo que as pessoas ouvem e não praticam. Sabem teorizar e possuem senso crítico a respeito, mas não estão nem aí. Em casos mais graves, doutrina é a cosmovisão do falante. Ele adiciona e subtrai conforme sua conveniência. Outros confundem doutrina com a citação de versículos. É a babel do ensino!
Bíblia
Originalmente um conjunto de livros a ser lido e estudado meticulosamente. Nestes novos tempos é 1) Um anteparo para as axilas; 2) Conjuntos de livros a ser ignorado; 3) Decoração para estantes e criados mudos; 4) Livro para ser exibido como demonstração de saber; 5) Mercadoria para lucro de grandes editoras. São considerados estranhos e até contrários ao regime os que estudam e aplicam os ensinamentos bíblicos.
Santidade
Inicialmente uma característica particular da Igreja, que tanto emanava do próprio Deus como era refletida cotidianamente pelos membros. Hoje significa aparência. Em
orwellgospeliano santidade é o que está do lado de fora, sem qualquer preocupação com seu reflexo no interior do praticante. Por consequência, aconteceu de alguns se autodenominarem santos, mesmo tendo uma vida totalmente distanciada de Deus.
Reverência
Na Bíblia Deus está presente no seu santo templo. Todos devem reverenciar sua presença. Em
orwellgospeliano reverência é a arte da descontração. Horário? Você chega e sai a qualquer hora. Postura? Fique à vontade, relaxe! Se suas costas puderem tocar o assento... tanto melhor. Converse e interaja com seu irmão ao lado. Se for pouco, converse com o da frente. Se puder,
hable com o de trás! Se alguém lhe chamar, saia imediatamente. E da maneira mais barulhenta possível. Vá buscar sua água bendita e traga o copo para dentro do templo. Depois jogue por ali, em qualquer lugar, que o diácono recolhe.
Chamada
Originalmente, algo dado da parte de Deus a alguém, geralmente para sofrer e fazer algo que os homens comuns não gostariam. Na linguagem
orwellgospeliana significa supremacia sobre os demais, obrigação de salamaleques, ausência de críticas e benefícios a apaniguados de oligarquias. A chamada neste contexto obedece a critérios puramente humanos e estratégicos para preservar
status quo e neutralizar oposições. Não é raro
chamada significar apenas mais dinheiro, carreado através de dízimos e ofertas. Ultimamente, são raríssimas as acepções em que alguém diz: Este tem chamada! e há objetivos divinos envolvidos.
Política eclesiástica
A política é a arte de direcionar a organização em torno de um objetivo. Originalmente, a Igreja praticava a política eclesiástica sem nem mesmo perceber. Era parte da definição de objetivos de curto, médio e longo prazo, alocando recursos humanos e financeiros para a consecução da obra do Senhor. A política existia para agradar a Deus. Nos novos tempos
orwellgospelianos política eclesiástica é a arte da sagacidade. As decisões são tomadas em penumbras e somente reveladas por necessidade. Eminências pardas se movimentam e fazem valer desejos e anseios de líderes maiores, sem que este se exponham. O único objetivo é a perpetuação do poder. Deus saiu de cena e é ao homem que a política eclesiástica presta sua adoração. E ai de quem questionar este ou aquele objetivo.
Culto
Nos primórdios da Igreja o culto era a expressão da união e da presença de Cristo, cumprindo sua promessa de estar entre nós todos os dias. Hoje a linguagem
orwellgospeliana se impôs e tudo conspira contra o culto. Os hinos não se conectam, os crentes não se entendem, a grande quantidade de grupos se impõem, sugando o tempo. Aliás, culto já não mais significa desprendimento da realidade, pois os irmãos navegam em suas redes sociais, fazem selfies e enviam mensagens ouvindo a Palavra de Deus. E sem prestar atenção no culto! Isto quando conversam a não mais poder. Uns vendem Avon, outros ilusão. Culto agora é festa, evento, badalação. Igrejas mais antenadas levam ringues e vídeos para entreter seus ouvintes. A marca registrada é a ausência de espaço para a pregação.
Pentecostes
As línguas que desceram em Atos e se sucederam ao longo do desenvolvimento da Igreja denunciavam a presença do Espírito Santo entre os salvos, com a operação de grandes e poderosos milagres. Em tempos
orwellgospelianos Pentecostes é pular, saltar, correr, fazer piruetas, dar profetadas para políticos. Virou clichê dizer: É forte! para cultos aonde houve muita meninice e pouco quebrantamento. E se não há decisões os crentes não se preocupam, desde que todo mundo vá pra casa suado... Os dons não são mais buscados, se Deus quiser dar, que dê! Quando milagres não acontecem é porque faltou fé ou porque Deus não queria.
Louvor
Na Bíblia até os anjos cantam. Tudo louva e exalta ao bom Deus. Em tempos
orwellgospelianos louvar é estourar os ouvidos. A bateria se sobrepõe aos demais instrumentos. A letra dos hinos não fala de morte e ressurreição, cruz, salvação, libertação, arrependimento ou arrebatamento. A tônica
orwellgospeliana é o antropocentrismo. Todos terão vitória e esmagarão seus inimigos. Sabe. não basta vencer, temos que ver o sangue correr. Crianças explodem as gargantas em tessituras inimagináveis. Cantores ganham rios de dinheiro, cobram altos cachês e ludibriam o auditório. As letras se repetem, denunciando a
cola acéfala.
O dicionário é imenso...
[1] Citação
ipsi literis da Wikipédia.